Redefinindo processos de Design de Experiência na era da GenAI
O design de produtos digitais se ancora, ainda hoje, em princípios da disciplina de Interação Humano-Computador (HCI) formulados na década de 1950, quando computadores ocupavam salas inteiras e eram operados por técnicos e cientistas especializados. Nesse contexto embrionário, temas como ergonomia e feedback orientado à prevenção de erros já complementavam a disciplina de Engenharia Computacional a fim de viabilizar a operação da tecnologia emergente.
Dos primeiros computadores à popularização das GUIs pela Xerox e Macintosh, passando pela massificação do PC impulsionada pela internet e pela adoção em massa de produtos digitais catalisada pelo iPhone, os fundamentos de design de interação permaneceram essencialmente estáveis. Conceitos como modelos mentais, findability, affordances, significadores, consistência e feedback seguem na agenda diária de times de produto e suas sessões de Design Critique — sinal de que, após mais de sete décadas de maturação da disciplina, a “receita de bolo” para um bom design de interação ainda não se tornou commodity. Projetar sistemas que pessoas comuns compreendam e operem com fluidez (e que, idealmente, estabeleçam uma conexão emocional capaz de transformar o mero uso em experiência) continua sendo uma tarefa desafiadora e caminho para diferencial competitivo no mercado.
Até aqui, o conceito de “interação” em HCI tem sido, em grande medida, uma via de mão única: o usuário fornece um input (um movimento do mouse, um clique, um texto em um formulário) e o sistema por sua vez reage com uma resposta previamente programada. Pushes, sistemas de recomendação e chatbots, em algum nível exercem o papel de iniciar interações e posicionar o produto digital de forma mais proativa, mas ainda operando sob uma mesma lógica de mecanismos de feedback reativo e não como agentes genuinamente interativos.
As transformações potencializadas pela AI já apontam para o rompimento desse platô; porém, mais do que espectadores da mudança, o cenário exige um exercício constante e intencional de repensar metodologias e processos de design, para que estimulem a exploração de novos modelos e paradigmas de interação que testem todo o potencial da tecnologia emergente—caso contrário, corremos o risco de limitá-la a “enxertos” de interfaces conversacionais que criam apenas uma percepção ilusória de inovação, sem um real desbloqueio de valor para pessoas e negócios.
Transformações latentes que deveriam passar a informar processos e métodos de design
1. Canais passivos se convertem em serviços proativos, multicanal e multimoda
Até aqui, projetar produtos digitais significou projetar canais passivos: apps e sites que aguardam um ciclo de necessidade → intenção → uso. O app da Uber só “vive” quando alguém precisa de transporte; o do banco, quando alguém precisa fazer uma transferência ou pagar uma conta. Mesmo os chatbots integrados ao produto ou canal esperam o clique no ícone de conversa; independente do número de desvios de jornada ou rage-clicks do usuário, não há intervenção proativa do sistema. O produto é, em toda sua extensão, um artefato inanimado, aguardando um input que possa ser respondido dentro de uma matriz limitada de possibilidades previstas, especificadas e codificadas uma a uma.
A AI generativa altera esse modelo. Sistemas que interpretam contexto, antecipam necessidades e iniciam ações convertem o canal passivo em serviço proativo: pagar um boleto vencido passa a ser algo que o sistema sugere (ou executa) antes mesmo que o usuário se lembre dele. Em contrapartida, agora passa a ser exigido do designer um olhar muito mais profundo sobre o potencial de serviço e da amplitude dos pontos de contato entre produto e cliente.
2. O desenho de jornadas lineares dá lugar ao desenho de intenções e contextos não-lineares
A prática clássica de UX orientada à produtos digitais se concentra, grosso modo, em mapear jornadas lineares canal a canal, no máximo apontando intersecções relevantes em uma blueprint mais estruturada. Num e-commerce de vestuário, por exemplo, a jornada costuma ser caracterizada pelas etapas de acesso → exploração → descoberta → consideração → decisão → identificação → checkout → pós-venda. Agora, considerando o potencial da GenAI, as jornadas se tornam cada vez menos lineares e mais multicanais e multimodais: a compra pode começar direto na etapa de decisão a partir de um prompt simples declarado por voz (“Alexa, preciso de uma camisa xadrez que possa ser entregue até amanhã”), retornar para o processo de consideração caso o valor da camisa escolhida pelo assistente não atender a expectativa do usuário, continuar por toque no smartphone até que, uma vez tomada a decisão, uma agentic-AI realiza todo o processo de checkout — do cadastro e preenchimento dos dados de entrega até o pagamento, tudo de forma semi-autônoma em segundo plano.
Neste cenário, o foco do design se desloca de jornadas e telas para intenções mais universais (buscar, explorar, considerar, decidir, acompanhar), cada uma tratada como um bloco autônomo e “agnóstico” a canal ou modalidade. A trabalho deixa de ser, por exemplo, sobre o desenho de páginas de vitrine ou busca e passa a tratar da orquestração do “explorar” de forma integral, seja por texto, voz ou gesto, em qualquer superfície, exigindo que alicerces e diretrizes de experiência extremamente sólidos antecedam a produção de qualquer artefato.
3. Design Systems deixam de ser apenas sobre componentes visuais a passam a agregar tokens de personalidade e comportamento
Se agentes de AI passam a falar, escrever e agir de forma autônoma em nome de uma marca, o Design System como conhecemos hoje deixa de ser apenas um inventário cores, botões e ícones e passa a incluir tokens de personalidade verbal, tom de voz, ritmo de diálogo e regras de comportamento.
Diretrizes e heurísticas de HCI que norteiam aspectos funcionais da produção de design continuam essenciais, porém não mais suficientes: a conexão emocional entre objeto e usuário por meio da integralidade do que Donal Norman classificou como os “três níveis do design” (visceral, comportamental e reflexivo) se torna mais relevante do que nunca a medida em que as experiências potencializadas por AI se tornam cada vez mais personificadas e expressivas.
Ferramentas como a dos arquétipos de Jung e matrizes de tom e propósito, amplamente utilizadas nas disciplinas de Marketing e Branding mas pouco conhecidas no contexto de produtos digitais, são exemplos de ferramentas que podem ser adotadas para ajudar a definir a essência conceitual de um agente de AI ao sugerir um investimento ou recomendar um restaurante. Em vez de “componente de botão primário de 48px”, pensamos em “componente encorajar ação”, materializado em interface gráfica, textual ou de voz, sempre ancorado na personalidade da marca.
Uma nova metodologia orientada a contextos e intenções
Para operacionalizar essa visão, frameworks clássicos devem evoluir para incorporar o mapeamento de intenções e contextos:
Vá além das telas e mapeie intenções atemporais: buscar, explorar, comparar, decidir, acompanhar, comunicar, alertar, recomendar, e outras coerentes ao contexto do seu produto.
Defina estados de contexto: momento (antes, durante, depois), nível de engajamento, urgência, localização, sazonalidade.
Especifique políticas de proatividade: quando o sistema pode/ deve iniciar? Quais são as limiares de confiança do cliente no sistema? Quais são os meios e predefinições que garantem ao usuário autonomia e controle sobre um sistema semi-autônomo?
Projete tokens de personalidade: tom de voz, estilo de linguagem, impressão de emoção. Permita que esses tokens sejam modulados de acordo com os estados de contexto mapeados.
Teste cenários combinatórios: simule variações de contexto + intenção em fluxos multicanais, usando prototipação ou storyboards e pautado no ciclo de vida do produto.
A proposta é um método é agnóstico a canais e escalável por meio de Design Systems enriquecidos com diretrizes verbais e comportamentais. Além de especificar jornadas e casos de uso como já fazemos hoje, o sistema deve incorporar diretrizes e assets que possibilitem à GenAI responder a cenários complementares com, além de “inteligência”, coerência formal e consistência estética em relação à marca que ela personifica.
Da possibilidade à prática
Pela primeira vez, temos condições técnicas para uma interação realmente bidirecional, de sistemas context-aware que antecipam necessidades, iniciam conversas e agem de forma semi-autônoma em favor do usuário, como mostram os agentes de AI apresentados no último Google I/O.
Entretanto, para que essa a revolução aconteça fora das big-techs, é necessário intencionalidade no pensamento e prática do design, o que passa por:
Aprofundar e expandir fundamentos clássicos de HCI e psicologia cognitiva: as heurísticas de Nielsen, as Golden Rules de Ben Shneiderman e os princípios de Human-Centered Design popularizados por Donald Norman seguem não apenas válidos como altamente relevantes, mas agora aplicados a cenários mais complexos, marcados pelo cruzamento de canais, múltiplas modalidades de interação e papéis de protagonismo mais fluidos entre usuários e sistemas.
Revisitar (e questionar) frameworks de mercado: em vez de tentar traduzir a nova tecnologia em virtude de modelos pré-existentes, é preciso deixar que a tecnologia também direcione o processo. O Discovery que normalmente orienta a estratégia e o produto final deve também nortear o método que guie à solução do problema em questão, portanto não tenha pudor em descartar frameworks consagrados para experimentar novos modelos conceituais que sirvam melhor à exploração de todas as potencialidades que a tecnologia apresenta.
Preparar as atuais matrizes de escalabilidade para antecipar cenários emergentes: no contexto de Design Systems, por exemplo, isso significa passar a incorporar tokens de personalidade, tom de voz e parâmetros de comportamento que parametrizem interfaces generativas e outputs de agentes de IA.
Promover times multidisciplinares e AI-first: designers, cientistas de dados, engenheiros e especialistas em conteúdo trabalhando lado a lado.
Nenhuma tecnologia é por si solução, mas matéria-prima do designer para projetar futuros possíveis. Mais do que oferecer outputs “inteligentes”, a AI concretiza uma visão a longo tempo idealizada sobre experiências digitais verdadeiramente interativas, onde o sistema não apenas responde, mas coopera e co-cria com cada pessoa. E isso muda tudo.


